A Casa errada


Era uma vez uma casa errada é um desenho e um texto ambos criados no contexto do Curso de Escrita Criativa que fiz no Nextart com a Carlota Gonçalves. 
O primeiro desafio era desenhar uma casa errada onde habitassem duas pessoas erradas, que estivessem a fazer uma coisa errada e onde houvesse um objecto errado. A partir do desenho tínhamos de escrever um texto que descrevesse o que estavam a fazer as pessoas erradas de errado na casa errada onde havia um objecto errado. Esta foi a minha resposta ao exercício.




Era Uma vez uma casa errada

A casa era errada, estava errada, seguia, errada. A casa tinha crescido da linha de terra para baixo como se fosse a raiz em vez da árvore. A casa pendia firme, concreta, ligada à corrente da terra. A casa emoldurava o ar e fingia ter porta e janela quando no fim de tudo o mais era abrigo para uma corrente. Fria e quente.

Fria e quente a água entrava, fria e quente saía rebentando na parede que fecha o caminho opondo-se à entrada.

A casa era oca. A casa era louca.

Os seus habitantes projectavam-se finíssimos e translúcidos na fachada. Finíssimos e translúcidos. O mecanismo era complexo e restrito e nem sempre funcionava: a onda entrava, correndo, o projector frio ligava-se espalhando luz, quente, pela fachada congregando as partículas amorosas necessárias à composição viva dos habitantes,-a onda saía correndo, a luz quente armazenava-se no projector frio e espalhava as partículas provocando desaparições suaves.

A sua vida era breve e frequente. A sua vida era fria e às vezes quente.

Quando existiam,completos- reagiam a si olhando muito interiormente, muito mutuamente a sua composição bidimensional, desejando mais. Imaginavam-se matérias tocáveis, carnes vivas, sopros exaláveis. Ela queria ser oca como a casa para ele poder ver e viver no seu interior. Ele queria ser onda e corrente. Corrente fria e quente.

Isto passava-se na casa, na casa errada.

Dentro da casa crescia uma árvore confusa, indecisa, não-sabente, consciente do seu crescimento na direcção errada, do lado errado da linha, questionava-se se não seria antes uma raíz. No entanto crescia firme e concreta, ligada à corrente da terra. Cada bifurcação, cada divisão da sua matéria era consciente, constante, firme e perene, segura e real como a sua confusa indecisão.
No desenrolar do seu crescimento não houve obstáculos, a casa errada, pendendo do lado errado da linha de terra, a casa estanque, abriu-se, generosa e reverente. Assim ela vingou confusa e indecisa regada pelo mecanismo complexo e restrito de aparição dos habitantes.

Assim se passava a vida na casa errada.

Embora todos os intervenientes se encontrassem circunscritos pelas mesmas linhas limite, do mesmo lado da linha da terra, nenhum deles tinha consciência do seu impacto na estrutura dos outros, no fluir dos outros, tudo se passava de si para si: as ondas não sabiam que faziam viver os habitantes, os habitantes não sabiam que só viviam quando as ondas vinham, a casa não sabia que se tinha aberto no topo para deixar passar a árvore-raíz e a árvore crescia sem saber das ondas, da casa, dos habitantes.

Intimamente ligados-intimamente desligados.

Era assim que na casa errada tudo estava certo.

Rita Carmo

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