Textos


2023
OPEN CALL "JOGO DO SÉRIO"
Local Círculo de Artes Plásticas de Coimbra
Texto RITA CARMO

Proponho a minha obra Camuflagem #1 para confronto com  Estore de Nuno Sousa Vieira no Jogo do Sério.                                                     Camuflagem #1 é composta por dois cortinados floridos  e muito coloridos dos anos 70, suspensos por argolas num varão cilíndrico de madeira, fixo à parede. O cortinado está mais afastado do chão do que seria normal.
Por detrás dos cortinados vemos duas botas de couro castanho usadas ao ponto de parecerem ainda ter os pés de quem as calça lá dentro, sugerindo a presença "mal disfarçada" de alguém que se esconde. 

Trata-se de uma autorretrato, as botas são minhas e o cortinado era o da sala da minha casa de infância. Reenceno aqui uma forma recorrente de brincar, escondendo-me atrás do cortinado.  Como sempre, ao deixarmos de ver quem nos procura esquecemo-nos de que os pés ficam à  mostra, denunciando-nos.

 Por outro lado não vendo o corpo a que pertencem os pés, o cortinado torna-se o próprio corpo: corpo escudo-corpo manifesto, eu com medo de me mostrar, escondendo-me atrás da minha herança familiar-eu orgulhosa das minhas "cores" de família mostrando-as ao mundo.  As botas de adulta provocam agora alguma inquietação em quem as vê,  quem está ali atrás e porquê? Não têm o mesmo efeito de uns pés pequeninos sob o olhar atento e divertido da família.

Penso que esta peça colorida, ondulada, maleável, decorada e habitada confrontará com intensidade a rigidez, o minimalismo, a monocromia e a sensação de abandono condensada no Estore. 

_CORTINADO CONFRONTA ESTORE- qual deles ganhará o Jogo do Sério? Quem ri primeiro?

Ou rirão os dois ao mesmo tempo? Das suas fragilidades e semelhanças, do espelhar da sua indefinição do interior/exterior, da sua sugestão de espreitar o que está para lá, ou da sensação potencial de se estar a ser observado ou observada. 
Será um empate depois de um logo e intenso período de tensão?
Veremos.


2022
Exposição Materiais de Construção-Ensaio aberto #2
Local Galeria Mergulho
Texto RITA MIRA

A morada de Rita Carmo
Lançarmo-nos num mergulho[1] no trabalho artístico de Rita Carmo é, inevitavelmente, imergir na sua história pessoal e nos significados que transportam os espaços e os objectos pertencentes ao tempo e à casa onde viveu a sua infância. A infância como o início da individualidade e a casa como a essência do ser que a habita, enquanto metáfora da formação do individualismo moderno, encontram forte expressão nesta exposição e em grande parte do trabalho recente desta artista plástica, em que a domesticidade e o quotidiano vividos se apresentam como parte integrante da sua interioridade construída.

Tendo como ponto de partida diferentes materiais de construção[2] dessa casa familiar – azulejos, cortinados, mantas, toalhas e outros tecidos, estantes, cadeiras, fotografias, paredes, janelas, vestuário, desenhos de infância – Rita Carmo revisita esse tempo, que quer esticado[3], e esse lugar – fortemente apropriados e presentes -, numa busca incessante pela sua origem e pelo processo de formação da sua própria identidade.

Esta casa familiar emana de uma construção mental e afectiva, edificada pela experiência do habitar e pelas memórias imaginadas da artista, transportando cada obra uma narrativa da formação da sua própria individualidade, resgatando momentos intemporais[4] e significados da intimidade subjectiva e familiar, sob um olhar retrospectivo e reflexivo do presente.

Esta exposição não nos confronta, assim, com um exílio nesse tempo passado numa perspectiva memorialista, mas sim com uma dialéctica descontínua entre passado e presente, com um jogo entre presença e ausência, entre interior e exterior, recuperando preciosidades[5] da história pessoal e familiar da artista, e reinventando[6] os espaços vividos com os sentidos do agora.

Afastando-se de meios mais tradicionais de expressão artística, Rita Carmo utiliza, numa óptica transdisciplinar, a fotografia, a instalação, a performance, consolidadas pela auto-representação. Através da fotografia, e com uma forte dimensão performativa, o corpo da artista funde-se com a sua obra, ora vestindo[7] tecidos pertencentes ao outrora quotidiano familiar, ora encaixando-se[8] em prateleiras que em tempos albergaram livros, ora aninhando-se, como se de um abrigo nuclear[9] se tratasse, em armários, bancadas e banheira.

A imagem e o corpo da artista não surgem como auto-retratos, constituindo a própria matéria-prima de algumas obras apresentadas, numa presença reiterada de si mesma, sem personagens ou artifícios.

A própria realização desta exposição apresenta-se como uma instalação artística, através da transformação da casa onde mora Rita Carmo numa galeria com horário de abertura para o exterior, entrecruzando-se no mesmo espaço a esfera privada e íntima da artista com o contexto público e profissional, flexibilizando-se, de forma singular, territórios e quebrando dicotomias, numa viagem, não ao Tahiti[10], mas à imaterialidade da verdadeira morada de Rita Carmo.

 

Rita Mira                                                                                     Lisboa, 8 de Junho


[1] Nome da galeria da artista.

[2] Título do projecto que a artista se encontra a desenvolver.

[3] Texto da artista que acompanha a obra Tea party intemporal na Rua do Bocage.

[4] Tea party intemporal na Rua do Bocage.*

[5] Pretérito Perfeito: um gabinete de preciosidades*

[6] Performance dada para o meu quarto de criança reinventado*

[7] Jogo de Construção*

[8] Jogo de Encaixe*

[9] Abrigo Nuclear*

[10] Lugar idílico onde a artista situa as suas residências artísticas 'Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!'. 

*Títulos das obras expostas.



2021
Exposição O Passado está Presente
Local Espaço 62, Lisboa
Texto GALERIA MERGULHO

O Passado está Presente

Esta exposição integra-se no Ciclo 1 Mês 1 Artista, organizado pelo Espaço 62. As áreas reservadas a este ciclo- a montra e duas paredes opostas- encontram-se lado a lado com os ateliers de artistas que trabalham quotidianamente no espaço, criando assim um contexto híbrido: Galeria-Atelier ou Atelier-Galeria.
Neste ambiente, Rita Carmo apresenta três obras que fazem parte do projecto "Materiais de Construção". Relacionar os materiais de construção da sua (casa de) infância com os da construção da sua identidade é neste momento o seu foco. A pesquisa tem vindo a realizar-se mais intensivamente desde 2020 nas residências artísticas "Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!", actualmente sediadas na Galeria Mergulho (também ela um espaço híbrido, Galeria-Casa ou Casa-Galeria).
No núcleo de trabalhos apresentados, o corpo está em destaque- camuflado, sugerido, inventado- revelando o processo da criança que brinca divertida ao: e se…?
Esta brincadeira origina personagens também elas híbridas: Mulher-Planta, Objecto-Mulher, Mulher-criança-objecto; oscilando de forma contínua entre passado e presente.
No decurso deste processo a adulta pergunta: Quantos materiais do passado ainda nos constroem no presente? Quanto de quem eu era continua a ser quem sou? Posso ser quem era e sou ao mesmo tempo? Posso reanimar o que foi, insuflar o passado, interpelar o presente?

Outubro de 2021


Entrevista Paços galeria Municipal de torres Vedras "Descobrindo a Colecção"


Em 2011, a Paços – Galeria Municipal de Torres Vedras recebeu a exposição Um quarto só dela, de Rita CarmoHoje, a artista dá a conhecer o seu percurso e o processo que deu origem àquela que foi a “primeira exposição individual em Portugal e a primeira em que me foi possível dar a ver o carácter multidisciplinar da minha prática artística”.



Muito do seu trabalho assenta num território onde a memória, a infância, o biográfico e o espaço casa são alicerces. Como foi esse primeiro encontro com as Artes Plásticas?

Apesar de gostar muito de desenhar, pintar, modelar, construir, não era realmente uma criança que já sabia que queria ser artista. Aquilo com que eu vibrava mais era mesmo dançar, cantar, saltar à corda, ao eixo, fazer o pino,  expressar-me fisicamente. Penso que esse impulso se materializou mais tarde quando comecei a introduzir a performance no meu trabalho.

O meu primeiro contacto com as artes plásticas, como as entendo agora, foi claramente através da minha mãe e do meu pai, não só porque também desenhavam e pintavam e nos estimulavam a fazer muitas atividades criativas, mas também porque vivíamos dentro duma “criação artística” que realizaram em conjunto: a nossa casa. Para além de terem planeado o espaço da casa e escolhido tudo o que estava nela, pintaram e criaram móveis, cortinados, roupas e todos os revestimentos e padrões que escolheram eram muito coloridos, com texturas diferentes e estimulantes esteticamente. Por outro lado, adaptavam e alteravam constantemente o espaço, uma das atividades mais divertidas e maravilhosas que aconteciam em família e em que tanto eu como o meu irmão participávamos ativamente.

Acho mesmo que foi essa experiência que fui revivendo à medida que comecei a fazer instalações e performances. A possibilidade de transformação do espaço, a alteração de funções, o fazermos por nós o que precisamos para criar um ambiente, tem tudo a ver com a forma como hoje faço e vivencio o meu trabalho artístico. Inclusivamente o projeto que estou a desenvolver é baseado nos materiais de construção dessa casa e em todas estas vivências.

A escolha de seguir o ensino artístico surgiu no final de uma sequência de outras profissões. Depois de ter querido ser detetive, arqueóloga e estilista de moda decidi escolher artes visuais no 10º ano. Pouco a pouco, a minha vontade de desenhar roupa foi-se transformando apenas na vontade de desenhar os corpos que vestiam a roupa.

Embora tenha entrado na ESAD [Escola Superior de Arte e Design] das Caldas da Rainha para fazer Pintura, na verdade acho que nunca pensei nessa ideia de ser artista e de que poderia ser a minha profissão, era apenas e, claramente, aquilo que eu queria fazer naquele momento.

Essa certeza começou a chegar no 3º ano da Licenciatura quando consegui criar um fluxo de trabalho intenso e de produção coesa e multidisciplinar que já nada tinha a ver com respostas a exercícios mas sim com um trabalho mesmo pessoal, que me era necessário e feito para mim.

Desde essa altura até hoje fui-me confrontando com vários contratempos e dúvidas das mais variadas naturezas relativamente a ser artista mas nunca desisti totalmente dessa ideia apesar das dificuldades de pô-la em prática.

E só agora, depois de ter criado a residência artística “Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!” e de finalmente ter tido a oportunidade de dedicar tempo contínuo ao meu trabalho, é que voltei a ter a certeza de que é isto que quero fazer!



No seu artist statement destaca "o desejo de tornar visíveis os contrastes, expondo as suas diferenças e semelhanças, explorando opostos como ocidental e oriental, museu e lar, História e história privada, antigo e novo”. Pode falar um pouco sobre estas marcas que habitam e fazem parte da identidade do seu trabalho?

Essa referência aos contrastes entre pares de aparentes opostos, que está no meu artist statement, surgiu em grande parte por causa de uma das instalações apresentadas na Paços - Galeria, A Room Of Her Own.

Nessa obra há uma parede com muitas e variadas imagens que se justapõem: fotocópias, fotografias, postais e folhetos de museus.

As fotocópias são tiradas de livros de gravuras de anatomia antigas, de livros de História da arte ocidental e oriental, de livros de botânica, catálogos de motivos decorativos de várias épocas, da revista 100 idées, entre outros.

As fotografias foram todas tiradas por mim durante a estadia em Bergen e nas viagens que fiz a Oslo, Rosendal, Copenhaga, NyKoping e Berlim. São fotografias do meu espaço de trabalho na faculdade, do meu quarto, das minhas roupas, de árvores, de passeios em jardins, na montanha, mas também das minhas visitas a museus de Arte Antiga e de História Natural.

No seu conjunto estes elementos não tinham aparentemente muito em comum mas a sua proximidade revelava possíveis relações mais profundas, ativadas também por analogias formais.

Esta peça não teria certamente existido com esta configuração se anos antes não tivesse encontrado alguns artigos na Biblioteca da Gulbenkian sobre o historiador Aby Warburg e o seu Atlas de imagens. E em que ele “falava” exatamente sobre essa possibilidade de ativação do significado das imagens pela sua justaposição, especialmente quando existe algum contraste a nível de origem, área de conhecimento, por exemplo.

De uma forma geral esses eixos contrastantes atravessam quer o meu trabalho anterior quer o atual. O eixo Museu-Lar/casa está presente, por exemplo, na integração de recortes de divisões ou elementos domésticos que depois se apresentam em contexto galerístico em instalações como A Room Of Her OwnFacing You, Amigas para sempre ou Camuflagem #1. Também o projeto em que estou a trabalhar, Materiais de Construção, está sempre a ser desenvolvido em contexto doméstico e utilizando apenas aquilo que tenho à mão, muitas vezes aglutinando progressivamente os objetos da minha casa atual e que mais tarde será inserido num contexto de galeria ou museu. Por outro lado, a criação da Galeria Mergulho, pressupõe também uma constante justaposição, simultaneidade ou alternância da casa, do ateliê e da galeria, e estes contrastes revelam as diferenças e semelhanças de cada espaço.

O eixo antigo-novo está presente quando utilizo, por exemplo, objetos e móveis Ikea e os misturo com outros antigos em 2ª mão como podemos ver nas instalações da exposição Um quarto só dela, ou quando pego nos objetos/roupas da minha infância e os misturo com os da minha casa atual reativando-os e  criando algo que nunca existiu, novo e antigo ao mesmo tempo.

O eixo História-História privada é visível tanto em A Room of Her Own, em que ponho em contraste elementos da História humana ou da arte com a história da minha vida e imagens da produção do meu trabalho artístico, como no trabalho com o espólio da minha família, pertencente aos anos 70/80, em que a história de uma família em particular acaba por revelar também um pouco da  História geral dessas décadas.

A junção e justaposição destes contrastes também revela uma atitude de transgressão do que são os limites pré estabelecidos e que caracteriza muito bem o meu trabalho: pôr coisas no sítio onde não era suposto, criar relações que suscitam surpresa ou confusão, é isto ou é aquilo?

Em relação ao papel do espaço no meu trabalho, seja ele doméstico ou não, o que posso dizer é que gosto de intervir nas três dimensões. Quando pintava adorava criar mundos na superfície, mas sentia, e sinto, uma grande necessidade de estar dentro do que estou a fazer, de agir fisicamente com o corpo todo, não tanto de criar uma realidade ilusória bidimensional, mas de pegar em coisas reais, misturá-las umas com as outras, relacionar-me com os objetos. A ligação com a performance está muito presente mesmo quando o produto final não é uma performance.

No entanto, também há sensações que só posso viver ou passar através da pintura, do desenho ou da escrita, e essa é realmente a razão do meu trabalho ser multidisciplinar.

Em 2011, a Paços – Galeria Municipal recebeu a exposição Um quarto só dela, uma das primeiras exposições em que a instalação e o espaço físico foram explorados. Fale-nos um pouco do conceito da exposição, assim como o processo de construção da mesma.

Um quarto Só Dela foi e é muito especial para mim, e realizá-la nessa altura na Paços - Galeria foi uma oportunidade incrível, quer ao nível pessoal quer profissional.

Foi a minha primeira exposição individual em Portugal e a primeira em que me foi possível dar a ver o carácter multidisciplinar da minha prática artística. Apresentava três instalações: A Room Of Her OwnFacing you e Gabinete-Imaginário (baseada num caderno de desenhos), o conjunto de pinturas Mitologia Pessoal (Por decifrar) e o registo vídeo da performance Danae.

O conceito geral consistia na revelação/apresentação do espaço de exploração pessoal que criei na minha primeira estadia na Noruega como bolseira Erasmus, em 2001.  Esta exposição correspondeu ao final de um processo progressivo de tentativa de definição desse território, que teve como paragens essenciais: o final da estadia Erasmus e o desenvolvimento do projeto How Things Grow and Transform Themselves Into Other Separate Things. Esta mostra assumia-se como um espaço metafórico, uma espécie de imagem tridimensional do imaginário que descobri e criei na Noruega.

Esse imaginário particular nasceu de uma atitude de ir fazendo tudo o que me dava prazer sem pensar se tinha uma coerência ou não, se tinha uma finalidade, deixando-me levar pelos meus desejos e as minhas paixões por imagens, objetos, cores, sons, linguagens, exteriores e interiores. Posso dizer que foi um caminho traçado pelo gosto no sentido mais biológico do termo.

Por não ter sido um trabalho tão filtrado racionalmente, tudo o que produzi era para mim ao mesmo tempo estranho e maravilhoso, e talvez por isso acabei por ter o mesmo impulso que está na base da criação dos primeiros gabinetes de curiosidades do século XVI e XVII: colecionar tudo o que fiz e mostrá-lo dentro de um armário exposto ao olhar de outras pessoas, e também do meu. E essa foi a primeira configuração visível deste território e, digamos, a primeira fase da construção dessa exposição.

Depois desse primeiro momento, aquelas peças começaram a tomar o seu rumo e saíram daquele armário reclamando espaços próprios, crescendo e separando-se em outras obras diferentes. Foi deste movimento que nasceu o projeto How Things Grow And Transform Themselves Into Separate Things que desenvolvi em 2005, novamente na Noruega, com uma bolsa de investigação do Governo Norueguês.

A minha intenção era fazer uma exposição numa casa em que cada peça ocuparia uma divisão, apresentando na primeira sala as fotos a preto e branco do Gabinete de Curiosidades e, de alguma forma, revelando a raiz de cada peça. Esta ideia não se concretizou, mas por causa dela surgiram inesperadas soluções que provavelmente nunca me teriam ocorrido, e que inverteram essa relação com a casa, uma vez que eram agora as próprias obras que integravam em si o espaço doméstico.  Na exposição que realizei na Noruega em 2005 A Room Of Her Own e Facing You apareciam como recortes de divisões instalados num espaço neutro de galeria.

Sendo o espaço um catalisador para a criação do meu trabalho ou para a vontade de o expor, quando tomei contacto com a Paços - Galeria, senti mesmo que aquelas obras tinham encontrado uma casa ideal.

Esse encontro proporcionou adaptações e recriações das peças, mas também a revisão do título da exposição que acabava por revelar uma outra faceta curiosa e determinante para o meu trabalho posterior. Ao olhar e trabalhar sobre algo que tinha construído anos atrás criei um certo distanciamento, já não conseguia identificar o que tinha produzido como totalmente meu, e essa característica refletiu-se em primeiro lugar no título da instalação A Room Of Her Own e depois no título da exposição, aquele “quarto” já não era meu mas sim “Dela”.

Todo o processo foi emocionante, especialmente rever as peças ao vivo e a ligação que se criou entre elas. Ficou mesmo como eu queria, foi um sonho realizado. E só tenho a agradecer todo o apoio prestado pela excelente equipa da Paços - Galeriapara concretizá-lo.

Em plena quarentena, criou a galeria Mergulho e a residência artística “Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!”. Em que é que consistem esses projetos? Está a desenvolver outros trabalhos?

Ambos os projetos surgiram como forma de solucionar duas questões com que me vinha a debater: a crescente frustração que sentia por não conseguir desenvolver o meu trabalho de forma aprofundada e a dificuldade em procurar oportunidades de exposição. Essas dificuldades resultavam sobretudo do desafio que era, e é, conciliar o meu trabalho artístico com a minha atividade como formadora de Desenho.

A quarentena acendeu e acelerou  ainda mais o desejo de investir nesta área, uma vez que o trabalho duplicou para fazermos a transição para formato online, e cada vez mais via o projeto ao fundo do túnel. Num dia particularmente estafante, recordei-me de que tinha uma semana de férias marcada e daí a declará-la residência artística foi um instante. Chamei-lhe “Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!” porque era mesmo isso que significava para mim ter a possibilidade de estar totalmente dedicada ao meu trabalho durante sete dias inteiros: uma verdadeira viagem a um paraíso tropical!

A experiência foi espetacular, deu-me um grande prazer voltar a pegar em ideias que estavam à minha espera há anos e concretizá-las sem pressões. Entretanto a residência tornou-se contínua, realizada em períodos intensivos ao longo do ano, permitindo-me finalmente ir desenvolvendo o  projeto Materiais de construção.

Quando iniciei a segunda residência imaginei expor os resultados no final, mas como só tinha um mês, entre julho e agosto, apercebi-me da impossibilidade de encontrar um espaço exterior, e por isso resolvi fazer apenas uma mostra online. No entanto, à medida que o tempo se aproximava do fim e o ateliê se ia expandindo pelo resto da casa, de repente pensei: E porque não abrir a casa e mostrar aqui as peças no contexto doméstico?

Criei assim a Galeria Mergulho e a sua primeira exposição: Materiais de Construção - Ensaio aberto #1.

A Galeria assume-se como um espaço fisicamente nómada, que coincide com as casas em que vivo, mas que poderá existir em qualquer lugar e tem também uma presença online via Facebook. Por enquanto alberga as minhas residências artísticas e divulga o meu trabalho, mas a minha ideia é também abri-la a outros e outras artistas.

Atualmente, como já referi, continuo a desenvolver o projeto Materiais de Construção no qual relaciono os materiais de construção da minha casa de infância com os materiais de construção da minha identidade. Não só os materiais concretos da casa mas também toda a cultura material e imaterial da família. As obras que desenvolvi até ao momento continuam a ser multidisciplinares (Instalação, Objetos, Fotografia, Performance fotográfica).

Em Novembro será possível ver alguns destes trabalhos no Espaço 62 em Lisboa, na iniciativa "1 mês 1 artista", e em breve voltarei a abrir a Galeria Mergulho para um novo Ensaio Aberto com os resultados das residências deste ano.

 

Legenda das fotografias:

Fotografia 1 - Facing you, Instalação 2005
Fotografia 2 - Jogo de Construção, Performance fotográfica (excerto), 2021
Fotografia 3 -  A Room Of Her Own, Instalação,  2005
Fotografia 4 - Camuflagem #1, Instalação, 2020 Foto-Paula Nobre
Fotografia 5 - Mitologia Pessoal (Por decifrar), Óleo s papel, 2002

Fotografia 6 - La Vie en Rose, Maquete para instalação, 2020


2020
Exposição Prête moi ta plûme pour écrir'amour
Local Ateneu do Catorze, São Luís, Alentejo
Texto RITA CARMO

Notas para quem passa

Todos estes lençóis, fronhas, manta, xaile, candeeiro, pertencem à minha casa de família, ao meu quarto, à minha infância e adolescência.

Os cortinados estavam na sala e sempre me escondi atrás deles e passeei imaginariamente entre as flores, absorvendo as suas cores luminosas e vibrantes que abriam com o sol.

Os lençóis e as cortinas foram confeccionados com carinho pela minha mãe, e as peças de lã, com o mesmo carinho, pela minha avó Rosário. Tal como as camas, onde eu e o meu irmão dormíamos com os lençóis amarelos, foram feitas com carinho pelo meu pai.

Estas peças e experiências fazem parte do meu ADN, ajudaram-me a crescer, e a crescer com uma visão orientadora e específica da vida: cor, alegria, criatividade, beleza, energia, calor, afecto, protecção.

Não foi por acaso que não tive um quarto cor-de-rosa.

Todas as escolhas dos elementos de construção e decoração da nossa casa foram feitas pelos meus pais em conjunto e, provavelmente sem pensarem nisso, mostravam-nos os seus valores e aquilo que queriam para nós.

A minha mãe cantava-me esta canção* para me acalmar e ajudar a adormecer.

Adormecer sozinha em adulta quer dizer activar essa memória e poder em relação a mim própria, por isso hoje a canto também, alternadamente com ela, como uma dança da chuva para dormir (porque neste momento gostava mesmo de dormir como uma criança).

Empresta-me a tua caneta para escrever uma palavra, ouve-se na letra original cantada pela minha mãe.

Empresta-me a tua caneta para escrever Amor, ouve-se na letra que canto, porque foi isso que sempre ouvi/senti.

Mais tarde observei muitas vezes com admiração a forma aprimorada e carinhosa com que o meu pai engomava e dobrava os lençóis. Pedi-lhe para engomar mais uma vez estes lençóis e ele carinhosamente acedeu.

Os da cama de criança engomei eu, primorosamente e com o mesmo carinho.

Este é um espólio que quero reactivar, expor e proteger.

Como disse ao Francisco esta é realmente a minha paisagem protegida.

Embora não tenha sido perfeita nem tenha durado para sempre, durará para sempre em mim e nas peças que for construindo com estas memórias.

Rita Carmo

*Au Clair de La Lune

Exposição Materiais de Construção: Ensaio Aberto #1
Local Galeria Mergulho, Lisboa
Texto PAULA NOBRE

La Vie en Rose, Maquete para instalação, 2020
"A casa é um corpo de imagens que dão ao ser humano razões ou ilusões de estabilidade. Estamos constantemente a re-imaginar a sua realidade: distinguir todas essas imagens, seria “dizer“ a alma da casa; seria desenvolver uma verdadeira psicologia da casa."¹ (tradução livre) 
Gaston Bachelard 

 Nesta exposição, o espaço da casa habitada torna-se lugar de outros lugares, e nele experienciamos o 'Mergulho' que dá nome a esta galeria. 

A casa como veículo de transmissão da identidade tem na exposição da Rita Carmo uma profunda relevância. As memórias da casa de infância e a intimidade familiar representadas por fotografias e objectos apropriados, ajustam-se a este outro lugar casa/galeria, criando novas leituras e renovados sentidos que se dirigem à sensibilidade simbólica e onírica de quem observa. O jogo do 'faz de conta', da manipulação cénica e da recriação de tempos passados trazidos para o presente, transformam este ambiente pessoal e íntimo em algo tão familiar quanto nosso - universal. 

 A multidisciplinaridade do projecto reafirma um processo de contínua busca de recursos, que se articulam e conjugam em séries performativas entre o corpo e o seu desenho/registo no espaço. O conceito de espaço é, aliás, fundamental em toda a prática da Rita Carmo. A própria natureza bidimensional da imagem fotográfica é ultrapassada, e adquire volume, e é precisamente desta ocupação/invasão espacial que opera o jogo impulsionador da imaginação. As figuras 'instaladas' adquirem formas e formatos inesperados, inquietos, perturbadores, presentes, ausentes e multiplicados, sempre na singularidade de um auto-retrato aqui exposto no lugar da casa.  

Segundo Gaston Bachelard, uma casa viva e luminosa renova-se a partir do interior. Aqui, a (auto)representação, manifesta-se exactamente através da interioridade, da artista, que se revela, revive e renova a cada intervenção no espaço. Deste diálogo resulta "uma verdadeira psicologia da casa" da infância. 

Paula Nobre 12.08.2020


¹ "La maison est un corps d´images qui donnent à l´homme des raisons ou des illusions de stabilité. Sans cesse on réimagine sa réalité: distinguer toutes ces images serait dire l´âme de la maison; ce serait développer une véritable psychologie de la maison."

Gaston Bachelard, La poétique de l´espace, 1957, p.34.


2011
Exposição Um Quarto Só Dela
Local Galeria Municipal de Torres Vedras
Texto PEDRO BARATEIRO

A Room Of her Own, instalação, 2011
O Jogo da Esfinge
A figura da esfinge, como entidade mitológica, é uma representação possível do enigma e da vontade de o decifrar. É uma metáfora para definir a relação que construímos com as pessoas e os objectos que estão à nossa volta. Há sempre uma pergunta inevitável que fazemos em silêncio a uma pessoa, a um objecto, a uma obra de arte, a um livro, ou qualquer outra coisa que se apresenta perante nós.

O acontecimento deve ter sido casual. Não sei ao certo como nem o que falámos  no primeiro encontro. Durante esse ano partilhámos um mesmo corredor na escola* onde nos conhecemos, e deverá ter sido nessa altura que comecei a frequentar o estúdio que Rita Carmo partilhava com outros amigos.

Vou dizer em voz alta e pela primeira vez uma coisa que guardo só para mim: lembro-me de entrar no estúdio da Rita Carmo à sua procura, e de repente ficar absolutamente sozinho com as suas pinturas e desenhos, todos dispostos numa grande placa de MDF, sustentada por cavaletes que, orgulhosamente se mostravam a mim como uma quase-revelação, uma pergunta, um ponto de exclamação e interrogação. Não havia ninguém no estúdio e eu estava sozinho, e ali fiquei até ser surpreendido comigo próprio por estar há tanto tempo a olhar, parado, e a questionar aquela esfinge. Em tudo aquele conjunto confuso de pinturas, desenhos, fotocópias de textos e objectos se pareciam com uma escavação arqueológica, como é habitual acontecer no estúdio de um artista. Mas havia ali qualquer coisa que se revelava, como num processo fotográfico analógico perante os meus olhos. Ou então era eu, que finalmente a sós com aquilo que era uma construção de outra pessoa, me revelava complexo e simbólico, de frente para o trabalho de outro que não eu. Aquela era uma esfinge possível. Era a certeza de que fazer perguntas a objectos aparentemente inanimados faz sentido. As perguntas continuavam e continuam ainda na minha cabeça, e deverão manter-se porque são elas que me seguram vivo e acordado em forma de sonho.

Nunca me questionei muito sobre aquilo que fazia desde pequeno, por saber que era uma coisa natural. Sempre desenhei, e para mim era absolutamente normal passar para o papel as minhas ideias, as minhas imagens, as minhas palavras. Olho para as coisas como enigmas e os desenhos de Rita Carmo são exactamente isso, enigmas. Continuei a visitar o seu estúdio para partilhar ideias e histórias que fazem parte de mim. O trabalho que Rita Carmo fez durante esse período de tempo (entre 1999 e 2001), e que eu tive o privilégio de acompanhar, parece-me ser absolutamente necessário para decifrar, e ao mesmo tempo complexificar, a sua obra. As suas composições de desenhos e pinturas são como que uma estrutura mental, um mapa, para aquilo que lhe interessa. Existe uma narrativa dentro destas composições que se consegue definir por uma intrincada teia de signos, utilizando formas que funcionam como um alfabeto novo. A utilização da cor, as diferentes intensidades do lápis ou da esferográfica, são essenciais para a comunicação entre as figuras que, por vezes, estão próximas da figuração, estabelecendo um jogo entre aquilo que é compreensível, e outras vezes abstracto. Parecia-me já na altura o que agora é mais claro, estava perante a construção de uma mitologia pessoal onde se faziam referências mais ou menos óbvias a alguns autores, ou ideias que artista tinha lido, algumas imagens ou fotocópias de textos e apontamentos da própria, que eram transformadas em outras imagens que agora eram suas. Os seus desenhos e pinturas tinham e tem ainda uma linguagem muito própria e utilizam o tal alfabeto de formas de que falava atrás. Toda a sua obra adquiriu, através dos desenhos e pinturas, um carácter performativo e uma vontade de acção, que implica uma disponibilidade física e uma exigência corporal, presente em obras como “Danae”(2001). O uso da performance foi por isso bastante natural e apareceu no seu trabalho como forma de dar corpo a algumas ideias que continuaram em obras como “A Room of Her Own” (2005). A performance foi mais uma técnica que a artista encontrou para “encenar” determinados estados de espírito, ou sugerir uma situação específica, catalisadora de um momento em que o espectador se confronta com um espaço preparado para o receber, e que poderá fazer referência a uma experiência da própria artista, mas que no limite nos confronta com nós próprios.

 E ainda mais imagens guardadas aparecem. Numa outra obra sua a artista utiliza uma estrutura quadrangular feita de metal e manga plástica fosca para construir uma unidade auto-suficiente do tamanho de um quarto normal.  O espectador pode assistir, do lado de fora, a uma performance que durou um dia. No interior haviam uma cama, uma mesa e uma cadeira, que a artista utilizava alternadamente.mantendo-se dentro deste espaço durante o tempo da performance.

A decisão de escrever sobre a obra de Rita Carmo foi pessoal. A Rita não me pediu que escrevesse sobre a sua obra, e isso é muito importante. Acontece que eu sempre tive vontade de descrever algumas imagens que guardo sobre o seu trabalho. Essas imagens são as minhas e o espectador não deverá confundir com as suas. Cada um de nós faz a sua pergunta. E é assim que deve ser. Há poucas certezas que tenho comigo, mas esta é uma delas: cada um faz as suas perguntas, cada um faz as suas imagens, por mais comuns ou complexas que sejam, por menos eloquentes ou intelectuais que possam parecer. Mas o importante é que as faça. A pergunta, ou as perguntas que faço à esfinge são as que faço a mim próprio. É um jogo. No limite somos todos Édipo e esfinge, ao mesmo tempo.

Pedro Barateiro

Setembro de 2011

 *ESAD das Caldas da Rainha, antiga ESTGAD