MATERIAIS de CONSTRUÇÃO - Ensaio Aberto #2 > Folha de Sala ilustrada

 A morada de Rita Carmo

Lançarmo-nos num mergulho[1] no trabalho artístico de Rita Carmo é, inevitavelmente, imergir na sua história pessoal e nos significados que transportam os espaços e os objectos pertencentes ao tempo e à casa onde viveu a sua infância. A infância como o início da individualidade e a casa como a essência do ser que a habita, enquanto metáfora da formação do individualismo moderno, encontram forte expressão nesta exposição e em grande parte do trabalho recente desta artista plástica, em que a domesticidade e o quotidiano vividos se apresentam como parte integrante da sua interioridade construída.

Tendo como ponto de partida diferentes materiais de construção[2] dessa casa familiar – azulejos, cortinados, mantas, toalhas e outros tecidos, estantes, cadeiras, fotografias, paredes, janelas, vestuário, desenhos de infância – Rita Carmo revisita esse tempo, que quer esticado[3], e esse lugar – fortemente apropriados e presentes -, numa busca incessante pela sua origem e pelo processo de formação da sua própria identidade.

Tea party intemporal na Rua do Bocage, Instalação e Foto-conto, 2021 (pormenor)








Esta casa familiar emana de uma construção mental e afectiva, edificada pela experiência do habitar e pelas memórias imaginadas da artista, transportando cada obra uma narrativa da formação da sua própria individualidade, resgatando momentos intemporais[4] e significados da intimidade subjectiva e familiar, sob um olhar retrospectivo e reflexivo do presente.

Esta exposição não nos confronta, assim, com um exílio nesse tempo passado numa perspectiva memorialista, mas sim com uma dialéctica descontínua entre passado e presente, com um jogo entre presença e ausência, entre interior e exterior, recuperando preciosidades[5] da história pessoal e familiar da artista, 

Pretérito Perfeito: um gabinete de preciosidades, Instalação, 2022















































reinventando[6] os espaços vividos com os sentidos do agora.


O meu quarto de criança reinventado, Instalação ,2021


Afastando-se de meios mais tradicionais de expressão artística, Rita Carmo utiliza, numa óptica transdisciplinar, a fotografia, a instalação, a performance, consolidadas pela auto-representação. Através da fotografia, e com uma forte dimensão performativa, o corpo da artista funde-se com a sua obra, ora vestindo[7] tecidos pertencentes ao outrora quotidiano familiar, 

Jogo de Construção, Performance fotográfica, 2021

ora encaixando-se[8] em prateleiras que em tempos albergaram livros,

Jogo de Encaixe, Estudo para instalação site-specific, 2022






ora aninhando-se, como se de um abrigo nuclear[9] se tratasse, em armários, bancadas e banheira.

Abrigo Nuclear, Instalação site specific, 2022

A imagem e o corpo da artista não surgem como auto-retratos, constituindo a própria matéria-prima de algumas obras apresentadas, numa presença reiterada de si mesma, sem personagens ou artifícios.

A própria realização desta exposição apresenta-se como uma instalação artística, através da transformação da casa onde mora Rita Carmo numa galeria com horário de abertura para o exterior, entrecruzando-se no mesmo espaço a esfera privada e íntima da artista com o contexto público e profissional, flexibilizando-se, de forma singular, territórios e quebrando dicotomias, numa viagem, não ao Tahiti[10]mas à imaterialidade da verdadeira morada de Rita Carmo.

 

Rita Mira                                                                                     Lisboa, 8 de Junho


Rita Mira é investigadora no Centro Interdisciplinar de Ciências Sociais / Faces de Eva da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa. Doutoranda em Sociologia, desenvolvendo investigação na área da construção social da intimidade. Mestre em Estudos sobre as Mulheres pela mesma universidade, com a dissertação "O Arquétipo da Princesa na Construção Social da Feminilidade". Licenciada em Direito pela Faculdade de Direito de Lisboa e pós-graduada em Gestão de Projectos em Parceria pelo ISCTE. Faz parte da equipa de redacção da Revista Faces de Eva.


[1] Nome da galeria da artista.

[2] Título do projecto que a artista se encontra a desenvolver.

[3] Texto da artista que acompanha a obra Tea party intemporal na Rua do Bocage.

[4] Tea party intemporal na Rua do Bocage.*

[5] Pretérito Perfeito: um gabinete de preciosidades*

[6] Performance dada para o meu quarto de criança reinventado*

[7] Jogo de Construção*

[8] Jogo de Encaixe*

[9] Abrigo Nuclear*

[10] Lugar idílico onde a artista situa as suas residências artísticas 'Se perguntarem por mim diz que estou no Tahiti!'. 

*Títulos das obras expostas.

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